Por David Alves Gomes
A
canção “Fado Tropical”, composta por Chico Buarque e Ruy Guerra, aborda assuntos
referentes à nacionalidade e à identidade do povo brasileiro, tendo como uma das referências históricas a Ditadura Militar brasileira. A música foi
composta para a peça teatral “Calabar, o elogio da traição”, escrita em 1973
pelos mesmos autores. A peça reconta a história de Domingos Fernandes Calabar,
mulato nascido em Pernambuco, que, no período da invasão holandesa no Brasil,
decidiu “trair” as tropas portuguesas e lutar ao lado das tropas holandesas.
A
antiga Historiografia abordava este fato histórico de forma a se repudiar a
ação de Calabar, transformando-o em um “traidor da pátria”. Isso ocorreu porque
o discurso conservador de construção da identidade da nação brasileira
considerava uma harmonia natural entre portugueses, negros e “índios” em prol
desta nação. Assim, os holandeses, que eram os “invasores”, deveriam ser
rechaçados pelas três etnias da sociedade brasileira, lideradas, obviamente,
pela portuguesa. Dessa forma, não é por acaso que, dentre outros, o mulato
Calabar foi o “escolhido” pela Historiografia para ser o “traidor da nação”. Em
seu livro “O Diabo e a Terra de Santa Cruz”, Laura de Mello e Souza aborda o
imaginário cristão no Brasil Colônia e destaca a visão da época sobre os
mulatos: eles negavam o trabalho sistemático por estarem além da relação
escravista de produção, sendo muitas vezes vistos como elementos subversivos da
sociedade.
Contudo,
essa visão é questionada pela peça teatral, pois o “traidor” é “elogiado”. O
contexto histórico em que a peça está inserida é o da Ditadura Militar, e essa
contestação em relação à traição de Calabar pode ser vista como uma contestação
ao regime político do Brasil, pois aqueles que contestavam o regime ditatorial
eram considerados traidores da pátria: o slogan
“Brasil, ame-o ou deixe-o” exemplifica bem a ideia de polarização politica
presente na conjuntura da época. É nessa concepção que a canção “Fado Tropical”
também se insere. No trecho “Te deixo consternado no primeiro abril” é evidente
a referência ao Golpe Militar de primeiro de abril de 1964.
Fonte da imagem: www.redebrasilatual.com.br |
O
título da canção é bastante polissêmico. Se por um lado, “fado” significa
“destino”, por outro, o “fado” é um estilo musical surgido do encontro entre a
modinha europeia e o lundu africano, sendo bastante utilizado nas propagandas
do regime salazarista português. O termo “tropical” faz referência ao Brasil.
Assim, as duas interpretações se complementam: no decorrer da canção, sempre se
ressalta o destino do Brasil (“esta terra”) de se tornar um imenso Portugal;
além disso, nesse momento, Portugal passava pelo regime salazarista, governo
ditatorial militar como no Brasil. “Fado” também pode fazer referência à
miscigenação existente no Brasil, já que o estilo musical “fado” é originário
de uma união da música europeia com a africana.
O
trecho “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: ainda vai tornar-se um
imenso Portugal!” é carregado de ironia: Portugal torna-se imenso através de
suas colônias, o qual, no período da canção, já estava as perdendo, (“Ainda vai
tornar-se um império colonial!”) e o Brasil, ao ter um regime semelhante ao de
Portugal, se tornaria também um império colonial? A canção ironiza o histórico
imaginário brasileiro de que Portugal foi um grande império ou qualquer tipo de
referência para a prosperidade de um país. Assim, a canção, nas entrelinhas,
sugere um destino (fado) triste para o Brasil ao seguir os passos da sua
ex-metrópole. Isso relembra a concepção de “Colônia Purgatório” do Brasil e de Portugal
como “Céu”, existente no Período Colonial, onde os colonos purgariam os seus
pecados através do trabalho no Brasil e sonhavam com a volta ao “Céu” que seria
Portugal (“Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal”). A visão de
superioridade portuguesa foi construída e reproduzida ao longo do tempo, sendo
criticada e ironizada pela música. Na canção, o grandioso rio brasileiro
Amazonas se desaguaria no rio português Tejo, constituindo uma metáfora de que
o Brasil estaria seguindo os caminhos de Portugal.
Dessa
forma, a canção “Fado Tropical” não somente faz uma crítica à Ditadura Militar
no Brasil, como também, em harmonia com a peça teatral “Calabar, o elogio da
traição”, contesta uma ideologia ainda muitas vezes presente no imaginário
brasileiro. Ao elogiar o “traidor” Calabar, a peça contesta toda a construção
de Portugal como um modelo de nação a ser seguido. Por sua vez, a canção nega o
regime salazarista e a Ditadura Militar brasileira, descrevendo, ironicamente,
o destino do Brasil que se tornaria tão imenso politicamente quanto Portugal é
um país “imenso”.
Bibliografia: SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
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